A primeira lição que aprendi sobre repressão à liberdade foi jogando bola nas ruas do Andaraí, bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Era 1988, meses antes da promulgação da “Constituição Cidadã” e nós jogávamos na frente dos prédios de uma rua de classe média. Calçada larga, poucos pedestres, prato cheio para jovens de 11 anos. Mas não para a síndica do prédio ao lado e seu marido “gigante” (que diziam ser policial): após meses de inúmeras ameaças, contra uma bola que nunca atingira ninguém (mesmo!), fomos literalmente perseguidos e acabei sendo pego pelo brutamontes, que me empurrou na porta de uma garagem e avisou: “Nunca mais faça isso, se não você vai ver!” Teimosos, continuamos jogando...
Teimosos também são os milhares de educadores e educadoras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que acabou de completar “25 anos de teimosia”, segundo João Pedro Stédile, dirigente nacional do movimento. Insistindo em jogar o jogo da liberdade, continuam a “ocupar a terra e semear o chão”. Porém, os inimigos da “Constituição Cidadã” (que determina que terras improdutivas devem ser desapropriadas para fins de reforma agrária) continuam empurrando esses jogadores da liberdade contra a parede, mas eles(as) continuam jogando...
Por isso, é vergonhosa a ação do Governo do Estado e do Ministério Público do Rio Grande do Sul em fechar sete escolas do MST existentes desde 1996, a despeito da aprovação do Conselho Estadual de Educação, por “perseguição política”, segundo Miguel Stédile, coordenador do movimento naquele estado. Alegando questões técnicas (que de tão inverossímeis não servem nem como desculpas...), o procurador Gilberto Thums revela o seu verdadeiro medo: “eles fazem lavagem cerebral para passar teorias marxistas”[2]. Ao acusar o MST de fazer “lavagem cerebral” de seus educandos, o referido procurador diz na verdade o seguinte: “não queremos que os seus filhos pensem de forma diferente, pois queremos que todos aprendam a pensar do mesmo jeito”. Talvez eu esteja enganado: talvez o Estado não queira que o povo pense...
Esse fechamento das escolas ocorre justamente em local simbolicamente forte. Na cidade onde as primeiras escolas foram fechadas, está localizado o assentamento de Nova Sarandi (fruto da primeira grande ocupação de terra, a fazenda Annoni, documentada pela cineasta Tetê Moraes do filme “Terra para Rose”[3] ), que recentemente recebeu mais de 2.000 lideranças de todo o Brasil e de várias partes do Mundo, no 13º Encontro Nacional do MST (cercado por terra e ar pela Brigada Militar, que pediu documentos até do ex-governador Olívio Dutra!).
Esse fechamento de escolas ocorre também em um momento historicamente perigoso, porque a democracia está em risco: em junho de 2008 foi descoberto um relatório secreto do Sr. Gilberto Thums, aprovado pelo Conselho Superior do Ministério Público em dezembro de 2007 (depois “desaprovado”, quando deixou de ser secreto...), que já previa o fechando das escolas do MST. Segundo esse relatório, era necessário “designar uma equipe de Promotores de Justiça para promover ação civil pública com vistas à dissolução do MST e declaração de sua ilegalidade”[4] (retórica da ditadura...). O relatório é tão violento que indiciou militantes do movimento com base na autoritária Lei de Segurança Nacional, da Ditadura Militar!!! Portanto, o fechamento das escolas do MST não é uma ação pedagógica da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul, mas uma ação política do Estado contra a Sociedade, atingindo os valores da Democracia.
Como recomendação de leitura para o Sr. Gilberto Thums e aqueles que defendem tais posições, indico os “Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental – Temas Transversais”[5] , principalmente na parte que trata da “Perspectiva da Autonomia no Ensino de Valores” (p. 35):
"A autonomia refere-se, por um lado, a um nível de desenvolvimento psicológico (...), e, por outro lado, à uma dimensão social. A autonomia pressupõe uma relação na qual os outros se fazem necessariamente presentes como alteridade. Nesse sentido, trata-se da perspectiva da construção de relações de autonomia. Não existe a autonomia pura, como se fosse uma capacidade absoluta de um sujeito isolado. Por isso, só é possível realizá-la como processo coletivo e que implica relações de poder não autoritárias. [Grifos meus]
"Lembrando que a dimensão ética da democracia consiste na afirmação daqueles valores que garantem a todos o direito a ter direitos, é preciso fazer uma distinção entre afirmação e imposição de valores. [Grifos meus]
"A imposição, por si própria, contraria o princípio democrático da liberdade e, com isso, o máximo que se consegue é que as pessoas tenham “comportamentos adequados” quando sob controle externo, o que é essencialmente diferente da perspectiva da autonomia na construção de valores e atitudes." [Grifos meus]
Que os educadores brasileiros saibam ler os sinais da democracia: sem liberdade, não há igualdade, não há cidadania, que é um dos objetivos da educação – preparar para a vida. Educação pode ser um ato de libertação. Porém, também pode ser um ato de repressão. A escolha de conteúdos é um processo político e pedagógico (dimensões sempre presentes e complementares), que contribuem para a conscientização ou a alienação dos educandos. No entanto, não é apenas nos conteúdos que a alienação se faz presente: os sistemas de educação pública em todo o Brasil são diversificados, mas têm em comum uma barreira à participação de educadores e educandos na construção de diretrizes e conhecimentos.
A educação como prática de liberdade, como nos ensinava o educador Paulo Freire (expulso do país pela Ditadura Militar de 1964 por ser “subversivo”), é vista por muitos gestores públicos como temerária e, por isso, cedem facilmente lugar ao modelo de educação como prática de controle: da freqüência dos alunos e professores ao pensamento dos mesmos. Infelizmente, a despeito dos esforços de bons profissionais da educação [sejam professores(as), diretores(as) ou funcionários(as)], suspeito que as nossas escolas se pareçam mais com fábricas para controlar o povo: as grades em todos os lugares, as portas das salas que são (quase) idênticas às de celas dos presídios, as cadernetas com carimbos de entrada e saída (que em breve serão substituídas por cartões eletrônicos, no Rio de Janeiro). Tudo parece ter como grande objetivo domesticar o povo, para se comportar no trabalho e na vida de acordo com as regras constituídas.
Não faço apologia à falta de regras, ao contrário: considero que o controle sobre a educação é fundamental, desde que seja um controle popular, ou seja, que o povo (enquanto educando, familiar ou comunidade) se aproprie das discussões e práticas educativas enquanto sujeito de direitos e não somente como objeto de diretrizes políticas nacionais, estaduais ou municipais. Essa é a questão: considero que a dificuldade que o povo encontra para definir, participar e exigir uma educação de qualidade é proporcional ao fracasso da educação básica no Brasil.
Observo isso não pela teoria, mas pela prática: trabalhando há quatro anos como professor de escola pública no Rio de Janeiro, conto nos dedos quantos familiares ou membros da comunidade participaram de alguma atividade pedagógica dentro de algum colégio estadual, para além de festas, formaturas ou passeios (que são importantes), mas parece-me que a escola pública pode ser tudo (salões de festa, agências de turismo, zonas eleitorais, centros de assistência social, postos de vacinação etc.), menos um local onde o saber está à disposição do povo.
Em geral, os(as) professores(as) de escolas públicas do Rio são bem qualificados (muitos têm pós-graduação, mestrado ou doutorado) e se esforçam para fazer mais com menos (ao contrário do mito que as elites a-do-ram reproduzir), mas mantêm uma gigantesca distância político-pedagógica das comunidades tão próximas, onde nossos educandos moram, considerando-as como lugar da violência, por conta dos tiros que ouvem e notícias que sabem. A violência não é só o tiro, a droga, a morte; mas toda e qualquer violação de direitos humanos, como a miséria.
Obviamente, todos têm o direito de ter medo da violência (sou um deles), mas não conhecer a realidade do educando dificulta a realização de uma educação de qualidade. Quando decidi subir um morro vizinho de um colégio estadual onde lecionava, para colaborar com uma campanha de alimentos que duas jovens educandas resolveram fazer para as famílias na miséria, aplicando na prática as aulas teóricas sobre cidadania, quase todos os meus colegas estranharam, uns considerando-me “destemido”, outros me acusando de “imprudente”, mas somente uma professora e uma funcionária de fato apoiaram.
Outra experiência prática de como a escola pode ser (mas raramente é) articulada com a comunidade é a experiência da BiblioCom (Biblioteca Comunitária), que foi fruto da união entre educadores e educandos do mesmo colégio estadual, que resolveram democratizar o acesso ao conhecimento para o povo de um bairro no subúrbio carioca. Durante meses fomos para uma praça local, com livros arrecadados entre os demais educandos ou doados pela comunidade. Apesar de todos os esforços dos participantes e do sucesso entre os moradores do bairro, nunca tivemos apoio da direção, ao contrário, fui perseguido e reprimido, após tentativas frustradas de cooptação. O motivo real: o projeto mostrava que outra escola era possível. Queríamos uma escola integrada com a comunidade, sem indicações políticas, onde educadores e educandos compartilhassem dos mesmos sonhos e lutas, que aplicassem na prática a teoria, acreditando que a educação vai além dos muros e grades da sala de aula.
Há alguns meses ouvi de um diretor de colégio estadual: “esse cargo me aliena muito”. Por isso ouso sugerir, enquanto professor da educação básica, que a escola pública brasileira como instituição está profundamente alienada da realidade dos educandos, de suas famílias, de suas comunidades, de seus trabalhos. É o reino da burocracia, onde o que interessa não é o aprendizado, mas o número de aulas ministradas, o diário preenchido (no prazo exigido) e “ser amigo do aluno”. Discussões pedagógicas partem do princípio de que “os alunos não querem nada” e propostas de melhoria esbarram “na falta de estrutura que o Estado oferece”.
Destaco que concordo, em parte, com a necessidade de uma organização burocrática (marca obrigatória da modernidade, segundo Max Weber) e com as afirmações majoritárias de meus colegas. Realmente é quase impossível (e desanimador) garantir uma educação com qualidade para todos, com os aviltantes salários e condições de trabalho que temos. Por isso, vou para as ruas com o SEPE-RJ para exigir reajustes reais e não parcelamentos de lojas de eletrodomésticos (“1% ao mês”). Porém, como fazer a nossa parte para a escola ser menos alienada da realidade e, ao mesmo tempo, exigir mais do Estado? Como fazer uma outra escola, aberta à comunidade?
Por outro lado, enquanto professor e gestor em organizações da sociedade civil há 10 anos, percebo uma incrível dificuldade por parte das lideranças comunitárias em participar mais ativamente do cotidiano escolar em suas localidades. Em recente reunião com comitês populares da Ação da Cidadania, em fevereiro de 2009, diversas lideranças de comunidades do estado do Rio de Janeiro relataram a quase total impossibilidade de trabalhar com as escolas próximas, por “má vontade da direção”, que alegam “não ter autorização da secretaria para tais parcerias”, o que em parte é verdade. Mas, por conhecimento e experiência próprios, afirmo: quando a direção da escola tem compromisso com a comunidade, a integração é fácil e acontece.
Porém, ao mesmo tempo em que as comunidades têm imensa dificuldade em entrar nas escolas, o mesmo não acontece com as empresas privadas. Há oito anos atrás, enquanto gestor de duas organizações do “terceiro setor empresarial”[6] (que no estatuto eram associações civis sem fins lucrativos mas que, na prática, eram fundadas por e administradas como empresas), mobilizei, treinei e levei inúmeros executivos de multinacionais para escolas públicas e privadas e entidades no estado do Rio de Janeiro (e não me arrependo disso).
Um dos projetos mais interessantes era o que ensinava crianças de 8, 9, 10 anos, que estavam cursando entre a 4ª e 5ª série do Ensino Fundamental a montar a sua própria empresa, em cinco aulas de 50 minutos cada. Uma das melhores aulas era a que fazia uma linha de montagem de canetas, no modelo fordista (essa “ONG empresarial” foi fundada por professores de Havard, após a Grande Depressão, para estimular o espírito empreendedor dos jovens). Outro grande projeto era o que ensinava jovens estudantes do ensino médio a criar e administrar uma empresa estudantil, com consultoria voluntária de executivos de empresas. Os estudantes aprendiam com executivos (a maioria de multinacionais) a como definir produto, preço, praça e produção. Elegiam CEOs, a diretoria e os trabalhadores (entre eles), capitalizavam a “empresa” (definiam o preço das ações e injetavam dinheiro), construíam estratégias e realizavam vendas, para auferir lucro ou prejuízo ao final do período (letivo, não o fiscal). O projeto sempre foi extremamente bem aceito pelas escolas públicas e privadas e ONGs, tendo crescente procura, pois estaria preparando os alunos para ter consciência dos “novos tempos”.
Por que digo que não me arrependo? Primeiro porque mesmo um projeto educacional de cunho neoliberal pode ter resultados libertadores (uma empresa estudantil que assessorei durante dois anos, em uma ONG, tornou-se uma empresa solidária, gerando reconhecimento material e simbólico para jovens pobres, cinco anos depois de encerrada a assessoria). Em segundo lugar, porque considero que os educandos precisam ter acesso à tudo: de Ford à Marx. Afinal, qual é o problema? Não há porque ter medo do fordismo ou do marxismo. Ambos são modos de pensar o mundo, frutos de ideologias existentes há décadas e é dever do educador ensinar bem ambas, para que os educandos saibam fazer escolhas. Obviamente, não existe neutralidade: quando preparo uma aula tenho as minhas posições político-pedagógicas, deixando-as claras para meus educandos, como bem assinala Max Weber [7]. Cabe ao educador ensinar a pensar livremente e ao educando aprender a pensar por conta própria, para aprender a fazer escol(h)as livres amanhã.
Atualmente, um grande banco privado está realizando um mega programa de reforço escolar entre os jovens de colégios estaduais de ensino médio, no Rio de Janeiro e em outros estados. O trabalho é simples: colocam estudantes universitários para lecionar matemática e português em horários alternativos às aulas (afirmando, na prática, que os futuros professores são melhores do que os atuais...). Estampam a marca do banco pelos cartazes e camisas de estagiários, professores e diretores (sem que isso seja considerado propaganda...). Isso é fruto de um convênio com as Secretarias Estaduais de Educação e é muito bem visto pela comunidade escolar (até porque, qualquer “ajuda” é bem-vinda). Mas quando os formadores de opinião aplaudem todos os empresários que lutam (lucram?) pela educação, não vejo promotores públicos acusando as empresas ou seus executivos de fazerem “lavagem cerebral”. Por quê será?
Então, deixa ver se entendi: executivo de multinacional e banco privado refazendo a escola pública, pode; lideranças comunitárias e movimentos sociais fazendo escola, não pode. Por quê? Ou as duas coisas promovem alienação, ou nenhuma delas aliena. Ou ambas são ideologias ou nenhumas dela é. Ou todos podem lutar pela educação ou ninguém pode ter direito à educação. Em resumo, ou se criminaliza a responsabilidade social das empresas na educação ou se garanta já e de uma vez por todas a legalidade de movimentos sociais reconhecidos pelas instâncias (verdadeiramente) democráticas trabalharem com as suas escolas e em nossas escolas.
Deixem os sem-terra estudar em paz! E que se criminalize a corrupção no Poder Executivo (lembram das acusações do ex-vice-governador do Rio Grande do Sul?), a formação de quadrilha do Poder Legislativo (lembram dos ex-deputados e ex-vereadores do Rio de Janeiro ligados às milícias?) e o nepotismo no Poder Judiciário (espero que quem lembre disso não ganhe de “presente” um Termo de Ajuste de Conduta...). Que país é esse em que se criminaliza o povo da educação e se reelege o povo do mensalão?
Companheir@s, continuem jogando livremente o jogo da cidadania nos acampamentos da vida. Vamos em frente, porque a vitória é nossa, sempre.
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[1] Maurício França Fabião é Mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Professor de Sociologia na Rede Estadual de Educação do Rio; e Gestor do Núcleo de EducAção da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Contatos: mauriciofabiao@hotmail.com | http://mauriciofrancafabiao.blogspot.com. O autor agradece com “amorosidade” à Amanda Mesquita de Oliveira Fabião pela inspiração e pelos comentários.
[2] ILHA, Flávio. “Governo do RS decide fechar escolas do MST; movimento protesta”. Porto Alegre: UOL Notícias, 18/02/2009, disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/2009/02/18/ult5773u661.jhtm.
[3] MORAES, Tetê (1987). “Terra para Rose”: http://br.truveo.com/Terra-Para-Rose-14/id/288230385146976843.
[4] MST. “Na luta pela Democracia!”: http://www.mst.org.br/mst/especiais.php?ed=71
[5] BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ttransversais.pdf.
[6] FABIÃO, Maurício França. “O Negócio da Ética: um estudo sobre o Terceiro Setor Empresarial”. In: Prêmio Ethos-Valor – A contribuição das universidades – vol. 2. São Paulo: Peirópolis, Instituto Ethos, Jornal Valor Econômico, 2003. Disponível em: http://www.ethos.org.br/_Uniethos/Documents/O%20Negócio%20da%20Ética_%20um%20estudo%20sobre%20o%20Terceiro%20Setor%20Empresarial.pdf. Para citações do trabalho: http://scholar.google.com.br/scholar?q=FABIÃO+%2B+"o+NEGÓCIO+DA+ÉTICA"&hl=pt-BR&lr=&start=0&sa=N.
[7] WEBER, Max. “A Ciência como Vocação”. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982.
Comentários
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Como vcs podem falar em democracia? Será que vc não sabe o que é democracia? Maxismo? Democracia? Vc acha que todo mundo é bobo? É isso? Quem é vc para falar em Ditadura? Só rindo mesmo! Vc não tem credibilidade ainda para falar a menos que apresente alguma coisa com conteúdo!